RENATO SANTOS 27/09/2017 O ensino religioso agora de acordo com as crenças dos professores mas regulamentado por cada estado, vai permitir ainda mais a presença e frequência das Escolas Dominicais nas Igrejas, seja elas tradicionais, ou pentecostais e até religião africanas a qual não será permitida nenhuma crise de identidade ou preconceito.
Leia a íntegra do voto do ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, que discutiu o ensino religioso nas escolas públicas, julgada improcedente pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Em seu voto, que integra a maioria, o ministro afirma que a Constituição brasileira conta com parâmetros precisos para garantir o direito integral dos alunos de escolas públicas em relação ao ensino religioso, seja ele confessional ou interconfessional.
Em seu entendimento, há salvaguardas suficientes, entre as quais a facultatividade da matrícula e o direito ao desligamento a qualquer tempo.
"Parece-me fora de dúvida que tal ensino foi autorizado pelos constituintes de 1988, que traçaram as balizas dentro das quais ele pode ser ministrado, de modo a harmonizar o princípio da laicidade do Estado com o postulado da liberdade de crença", disse o ministro.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu nesta quarta-feira (27) o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, que discute o modelo de ensino religioso nas escolas públicas do país.
Os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Rosa Weber e Luiz Fux votaram pela procedência da ação, por entenderem, em síntese, que o ensino religioso deve ser não confessional, ou seja, não vinculado a uma religião específica.
Já os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes divergiram e votaram pela improcedência da ação.
O julgamento foi retomado com os votos dos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, e da presidente, ministra Cármen Lúcia.
O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Vogal): Trata-se de ação
direta de inconstitucionalidade, proposta pela Procuradoria-Geral da
República, que tem como objeto o art. 33, caput, e §§ 1º e 2º, da Lei
9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e o artigo 11,
§ 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a
Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil,
aprovado por meio do Decreto Legislativo 698/2009 e promulgado pelo
Decreto 7.107/2010.
A Procuradoria-Geral da República afirmou, em síntese, que a
Constituição consagra tanto o princípio da laicidade do Estado (art. 19, I),
quanto a previsão de que “o ensino religioso, de matrícula facultativa,
constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental” (art. 210, § 1º), e que, por força do princípio da unidade da
Carta Política, se, por um lado, há espaço para o ensino religioso, por
outro, ele não pode ser de natureza confessional e nem mesmo de caráter
interconfessional ou ecumênico, devendo-se assegurar a neutralidade
estatal em matéria religiosa.
Sustentou que, para compatibilizar os princípios constitucionais que
incidem no caso, faz-se indispensável que o modelo de ensino seja não
confessional, de forma que o conteúdo programático da disciplina
consista na exposição das doutrinas, práticas e histórias das diferentes
religiões, bem como de posições ateias e agnósticas, sem tomada de
partido por parte dos educadores, os quais devem ser professores
regulares da rede pública de ensino, não podendo ser pessoas vinculadas
à qualquer confissão religiosa.
Asseverou, mais, que a despeito de o art. 33 da Lei 9.394/1996, dispor
em seu caput que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte
Em elaboração
ADI 4439 / DF
integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado
o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
formas de proselitismo”, este mesmo dispositivo vem sendo interpretado
pelas autoridades públicas como se fosse compatível tanto com o ensino
confessional quanto com o interconfessional.
Ressaltou, ainda, que com a incorporação do art. 11, § 1º, do Acordo
entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, o qual
estabelece que que “o ensino religioso, católico e de outras confissões
religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com
a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação”, parece estar configurada afronta ao princípio da
laicidade do Estado, salvo se a interpretação adotada for a de que há
espaço para ensino não confessional de doutrinas católicas, além
daquelas pregadas por outras religiões.
Asseverou, também, que o resguardo ao princípio da laicidade
estatal favorece a formação de cidadãos autônomos, com capacidade de
reflexão crítica, e que a mera facultatividade do ensino religioso não é
capaz de evitar um indesejado doutrinamento, já que a recusa à
frequência das aulas de religião tende a impor um ônus exagerado a
quem pretender fazer uso desse direito.
Requereu, assim, seja conferida interpretação conforme a
Constituição Federal aos referidos dispositivos para assentar que o ensino
religioso em escolas públicas deve ter natureza não confessional, com
proibição da admissão de professores na qualidade de representantes das
confissões religiosas.
Adotou-se o rito do artigo 12 da Lei 9.868/1999.
2
Em elaboração
ADI 4439 / DF
A Presidência da República, a Câmara dos Deputados, o Senado
Federal e a Advocacia-Geral da União manifestaram-se pela
improcedência da ação.
Inúmeras entidades habilitaram-se como amicus curiae, tendo sido
realizada audiência pública a respeito do tema.
É o relatório. Decido.
Começo assentando que a Constituição brasileira, em harmonia com
o mais abalizado entendimento internacional a respeito do tema -
especialmente daquele emanado dos julgados da Corte Europeia de
Direitos Humanos, situada em Estrasburgo - estabeleceu parâmetros
precisos e, por si sós, suficientes para garantir o respeito integral aos
direitos e interesses de todos quantos frequentam escolas públicas no
tocante ao ensino confessional e interconfessional.
Tais balizas constam explicitamente do art. 210, § 1º, de nossa Carta
Política, o qual dispõe que “[o] ensino religioso, de matrícula facultativa,
constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental” (grifei). É, assim, com efeito, na própria diretriz
constitucional - segundo a qual o ensino religioso constitui disciplina
facultativa - que reside a solução para a questão posta em julgamento.
A facultatividade desse tipo de ensino constitui, segundo a Corte de
Estrasburgo, salvaguarda bastante para o respeito ao pluralismo
democrático e à liberdade de crença dos alunos e de seus pais quanto ao
ensino público religioso,1
decorrendo de tal garantia diversas implicações
práticas que exporei a seguir.
Uma primeira implicação prática é que a dispensa do ensino
1 Folgero et. Al. v. Noruega e Mansur Yalcin et. Al. v. Turquia.
3
Em elaboração
ADI 4439 / DF
religioso (opt-out) pode e deve ser exercida livremente, sem quaisquer
constrangimentos aos alunos ou aos seus pais, i.e., sem quaisquer
formalidades, sem a necessidade de justificativas ou explicações e, mais,
sem que caiba ao Estado deferir ou não a dispensa requerida. Este é o
primeiro pressuposto de compatibilidade do ensino confessional e
interconfessional com o regime de proteção dos direitos humanos no
plano internacional e com a regra constitucional acima referida.
Como decorrência da facultatividade, expressa na Constituição, e da
consequente proibição de qualquer tipo de coerção no que respeita à
frequência às aulas de ensino religioso nas escolas públicas,2
também não
podem ser atribuídas notas aos alunos, aos quais, além disso, deve ser
assegurado o direito ao desligamento, a qualquer tempo, da disciplina,
caso nela tenham se matriculado.
Ademais, um dos principais consectários da facultatividade
consignada na Constituição é que tal característica se espraia para todos
os aspectos do ensino religioso, que, aliás, perde seu caráter estrito de
disciplina integrante do currículo obrigatório. Isso porque diante da
delicadeza do conteúdo transmitido, se o docente não for suficientemente
sensível às diferenças culturais e religiosas do corpo discente ou se o
programa ministrado apresentar um caráter sectário, que leve a um
aliciamento ostensivo ou subliminar, a dispensa dos alunos do curso, sem
nenhum tipo de impedimento, constitui garantia essencial para a
liberdade fundamental de crer ou não crer em alguma religião também
seja assegurado.
Nesse sentido, orientações importantes tanto para o administrador,
quanto para o legislador e mesmo para o julgador, podem ser extraídas
das “Diretrizes de Toledo”,3
as quais sistematizam as boas práticas
2 EVANS, C. “Religious education in public schools: an international human rights
perspective”, Human Rights Law Review, Oxford University Press, 8, 3 (2008), p. 453.
3 Toledo Guiding Principles on Teaching About Religions and Beliefs in Public
Schools” (Varsóvia: Organization for Security and Co-operation in Europe/ODIHR Advisory
4
Em elaboração
ADI 4439 / DF
concernentes ao ensino religioso nas escolas públicas à luz de princípios
internacionais de direitos humanos, permitindo a dedução de regras
concretas relativas ao ensino religioso, em tal contexto, de forma
respeitosa e inclusiva.
Segundo essas recomendações, o ensino religioso não pode ter como
objetivo o proselitismo,4
que consiste no intento, explícito ou velado, de
conversão dos alunos a alguma confissão específica. Para honrar seu
dever de neutralidade, o Estado precisa zelar para que os currículos
ofertados sejam suficientemente imparciais e equilibrados ou, quando se
tratar do ensino de uma confissão específica, oferecê-lo de forma
facultativa,5
institucionalizando a possibilidade de dispensa do aluno sem
que este venha a sofrer qualquer tipo de desvantagem, discriminação ou
estigma.6
Considero importante sublinhar que, a meu sentir, não existe
nenhum tipo de incompatibilidade entre democracia e religião no Estado
laico: ao contrário, ambas podem e devem ser parceiras na busca do bem
comum, especialmente no desenvolvimento de uma sociedade plural e
compreensiva para com as naturais diferenças entre os seus integrantes.
O conceito de laicidade no Brasil, cumpre ressaltar, assim como em outros
países,7
embasa-se no tripé tolerância, igualdade e liberdade religiosa.
Trata-se, acima de tudo, de um princípio constitucional voltado à
proteção das minorias que, graças à separação entre o Estado e a Igreja,
não podem ser obrigadas a submeter-se aos preceitos da religião
majoritária.
Essa separação não constitui, é importante destacar, quer no Brasil
Council of Experts on Freedom of Religion or Belief, 2007), p. 68–73.
4 Ibidem, 69.
5 Ibidem, loc. cit.
6 Ibidem, loc. cit.
7 Ver, a título exemplificativo, KAPUR, R., “The Right to Freedom of Religion and Secularism
in the Indian Constitution”, in Defining the Field of Comparative Constitutional Law, org. Vicki
Jackson e Mark Tushnet (Westport: Praeger Publishers, 2002).
5
Em elaboração
ADI 4439 / DF
quer em outros países, uma muralha que separa cosmovisões
incomunicáveis. Se assim fosse, não seriam admissíveis, inter alia, a
menção explícita a Deus no preâmbulo de nossa Constituição, os feriados
religiosos, o descanso dominical e muitas outras manifestações religiosas
institucionalizadas pelo Poder Público, como, por exemplo, a aposição do
crucifixo no plenário da mais alta Corte do País.
Rememoro, nesse sentido, os dispositivos constitucionais que
prestigiam a liberdade religiosa, os quais expressam, nas palavras de José
Afonso da Silva, os “pontos de contato” entre Estado e religião, a revelar
a “confessionalidade abstrata” que permeia a Carta Política brasileira:8
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes:
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de
assistência religiosa nas entidades civis e militares de
internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-
los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança,
ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
8 DA SILVA, J. A., Comentário Contextual à Constituição (São Paulo: Malheiros, 2010, p.
97). O autor nomeia a confessionalidade que permeia a Constituição como abstrata porque não
“referida a uma confissão religiosa concreta, se bem que ao largo da história do país o substrato dessa
confessionalidade é a cultura haurida na prática do Catolicismo”.
6
Em elaboração
ADI 4439 / DF
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir
serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados,
alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o
decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou
política, para se eximirem de atividades de caráter
essencialmente militar.
§ 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do
serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a
outros encargos que a lei lhes atribuir.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
b) templos de qualquer culto;
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa,
constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da
lei.
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas
públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias,
confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus
excedentes financeiros em educação;
II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra
escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder
7
Em elaboração
ADI 4439 / DF
Público, no caso de encerramento de suas atividades. (grifei)
Além dos artigos citados, muitos outros poderiam ser mencionados,
por prestigiarem, direta ou indiretamente, a multiconfessionalidade e o
pluralismo religioso do povo brasileiro.9
Tais pontos de contato permitem
inferir, com a certeza necessária, que laicidade não implica descaso estatal
para com a religião, mas sim consideração para com a diferença, de
maneira tal a prever a colaboração de interesse público entre o Estado e as
distintas confissões religiosas, reputada a tal ponto necessária e relevante
que chega a ostentar envergadura constitucional, como ocorre nos casos
acima assinalados, mais especificamente na hipótese das entidades de
internação coletiva e nas escolas públicas.
É importante ressaltar, ainda, que não é inédita em nosso
ordenamento jurídico a colaboração de interesse público no âmbito do
ensino estatal. Pelo contrário, remonta à Constituição de 1934,10 tendo
sido reafirmada na Constituição de 1946,11 e, novamente, na atual
Constituição de 1988, todas de cunho inegavelmente democrático. Isso
sem mencionar as Cartas dos períodos autoritários, a saber, as de 1937,
1967 e 1969, que também dispuseram expressamente sobre o ensino
religioso como disciplina de matrícula facultativa aos alunos de escolas
públicas.
Anna Candida da Cunha Ferraz, após enfatizar a relevância da
busca por coerência na interpretação constitucional e a valoração positiva
9 Ver outros exemplos em: FERRAZ, A. C. d. C. “O ensino religioso nas escolas públicas:
exegese do § 1 do art. 210 da CF”, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, n 20 (julho
de 1997) p. 26.
10 Art. 153 da Constituição de 1934: “O ensino religioso será de frequência facultativa e
ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou
responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias,
profissionais e normais.”
11 Art. 168, V, da Constituição de 1946: “O ensino religioso constitui disciplina dos horários
das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa
do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável.”
8
Em elaboração
ADI 4439 / DF
que o Estado brasileiro faz da religião, de modo a justificar que a
separação entre Estado e religião possa ser considerada “atenuada” em
nosso País, sustenta que o único entendimento possível da locução
“ensino religioso” na Constituição é que se trata do ensino confessional.
Ensina a especialista:
“De um lado, somente como tal, isto é, como ensino de
religião, é que se pode entender a expressa ressalva aberta no
preceito referido. Fosse de outra índole ou natureza o ensino ali
referido e não haveria necessidade de menção especial no texto
constitucional. Com efeito, se não se tratasse de ensino
confessional, de ensino de religião, não haveria razão para o §
1º. Se se tratasse de matéria não afeta a uma religião, se se
tratasse de ensino desvinculado de religiões ou confissões
religiosas, o preceito constitucional não seria necessário. O
currículo do ensino fundamental, como se sabe, não vem
previsto no texto constitucional. A lei ou os Conselhos de
Ensino fixam-no.
Por outro lado, sempre que a Constituição utiliza o
qualificativo ‘religioso’ ou ‘religiosa’ o faz no sentido
significante de ‘relacionado à religião’. Observe-se, por
exemplo, a referência constitucional ao casamento religioso.
Claro há de se entender, nesse caso, casamento realizado por
uma religião, vale dizer, uma entidade ou organização religiosa.
Veja-se, ainda, a referência à ‘assistência religiosa’ (art. 5º, VII); à
crença ‘religiosa’ (art. 5º, VIII e art. 143, § 1º), aos cultos
‘religiosos’ (art. 5º, VI).
Pode-se discutir sobre a oportunidade ou conveniência de
se introduzir o ensino religioso nas escolas públicas. Todavia
não se pode questionar tenha a Constituição previsto,
exatamente, a ministração de ensino de religião.”12
Assim, quer sob perspectiva histórica, quer sob a sistemática, quer
ainda sob a doutrinária, não restam dúvidas, ao menos para mim, de que
12 FERRAZ, “O ensino religioso nas escolas públicas: exegese do § 1 do art. 210 da CF”, p. 39.
9
Em elaboração
ADI 4439 / DF
o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confessional. E
mais: que não cabe a estes estabelecimentos de ensino negar à
comunidade o direito de contar com instrução confessional de seu
interesse, quando mais não seja por respeito à liberdade de aprender e de
ensinar a religião num País que, conquanto laico, não deixa de ser plural e
tolerante para com as todas as crenças e respectivas manifestações, de tal
sorte a torná-las objeto de especial proteção no texto constitucional.13
A laicidade tem sido objeto de importantes reflexões em julgamentos
desta Suprema Corte, como as destacadas pelo Ministro Celso de Mello,
no julgamento da ADI 3.510/DF:
“A laicidade do Estado, enquanto princípio fundamental
da ordem constitucional brasileira, que impõe a separação entre
Igreja e Estado, não só reconhece, a todos, a liberdade de
religião (consistente no direito de professar ou de não professar
qualquer confissão religiosa), como assegura absoluta
igualdade dos cidadãos em matéria de crença, garantindo,
ainda, às pessoas, plena liberdade de consciência e de culto.
O conteúdo material da liberdade religiosa compreende,
na abrangência de seu significado, a liberdade de crença (que
traduz uma das projeções da liberdade de consciência), a
liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa, que
representam valores intrinsecamente vinculados e necessários à
própria configuração da ideia de democracia, cuja noção se
alimenta, continuamente, dentre outros fatores relevantes, do
respeito ao pluralismo”.
Na ADPF 431, o Min. Dias Toffolli, por sua vez, com propriedade,
afirmou que:
“O direito à liberdade de crença (...) guarda íntima relação
13 Em sentido semelhante, confira-se, nos anais, manifestação da constituinte Sandra
Cavalcanti, disponível no Diário da Assembleia Nacional Constituinte de 31 de Agosto de 1988,
p.13794.
10
Em elaboração
ADI 4439 / DF
com o direito à manifestação do pensamento, seja do
pensamento religioso, seja das ideias agnósticas, sendo um
contrassenso que a exteriorização do pensamento seja tolhido
em nome da proteção da liberdade de crença, reduzida que
ficaria em uma de suas facetas. Não por acaso, o dispositivo
legal que protege a liberdade de crença protege igualmente a
liberdade de consciência”.
Os limites da laicidade, convém salientar, não são estáticos, mas sim
dinâmicos e históricos, e a pedra de toque dela é a liberdade em sentido
amplo, quer dizer, a vedação de o Estado impor determinada religião às
pessoas ou impedir que elas professem uma crença de sua livre escolha.
De toda a sorte, o ensino religioso nas escolas públicas, seja ele
confessional ou interconfessional, somente se mostrará legítimo se
observar os preceitos de neutralidade aplicáveis, notadamente os que
constam dos documentos internacionais que tratam do tema,
particularmente do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e
do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ambos de 1966, bem assim da Convenção sobre os Direitos da Criança de
1989, todos firmados no âmbito das Nações Unidas.
O importante é que o ensino público, de modo geral, inclusive em
matéria de religião, seja ministrado de forma cuidadosa e respeitosa, sem
discriminar ou estereotipar os alunos em razão de suas características
pessoais ou opções individuais. Apesar de não caber à escola pública
nenhum tipo de avaliação quanto à legitimidade das diversas crenças,
como, aliás, bem ressaltou a Corte de Estrasburgo no julgado Exército da
Salvação de Moscou v. Rússia, o ensino religioso deve levar em
consideração a condição especial de pessoa em desenvolvimento dos
jovens alunos, titulares do direito à proteção integral, porquanto eles se
encontram ainda em uma fase inicial da vida, particulamente quanto à
formação de sua personalidade e capacidade crítica.
Isso exige que o Estado empreenda todas as providências necessárias
11
Em elaboração
ADI 4439 / DF
para que os docentes passem pelo treinamento necessário para fazer com
que o ensino por eles ministrado respeite, como já salientado, os direitos
fundamentais dos alunos, sobretudo, a liberdade de crença de todos
aqueles que integram a comunidade escolar.14 Isso não vale apenas para o
ensino religioso, mas para todo o processo educacional e, de resto, para
todas as ações estatais, como decidiu a Corte de Estrasburgo no caso
Hasan e Eylem Zengin v. Turquia.
Saliento, por oportuno, que a inviabilidade de abrigar-se todas as
igrejas e confissões em uma única escola não afasta a possibilidade de
ministrar-se o ensino confessional ou interconfessional, já que tal
dificuldade aplica-se igualmente ao ensino secular. À toda a evidência,
jamais haverá condições fáticas para ofertar-se aos alunos o ensino de
todas as religiões e disciplinas práticas ou teóricas que existem, uma vez
que elas não constituem um numerus clausus.
Vale acrescentar, ainda, a bem do debate, que a Corte Europeia de
Direitos Humanos já decidiu que a disponibilização do ensino de uma
única religião ou o seu ensino de forma predominante, em se tratando da
religião professada de forma majoritária num determinado país, não
implica proselitismo religioso e não ofende nem o postulado da liberdade
religiosa nem o princípio da igualdade.15 Isso porque, na maior parte dos
países, existem religiões professadas de forma predominante - caso do
catolicismo no Brasil – sendo natural, nessas situações, que o Estado, sem
que imponha aos alunos a religião preponderante, conceda maior
visibilidade ou espaço a tais confissões, inclusive, nas escolas públicas.
Relembro, neste sentido, o teor do julgado no caso Lautsi et. Al. v.
Itália, do Tribunal europeu, no qual se decidiu que a maior visibilidade
dada a um símbolo do cristianismo não ofende o postulado da laicidade
estatal nem implica doutrinação dos alunos. A Corte relembrou julgados
14 Ibidem, p. 15.
15 Ver: Folgerø et. Al. v. Noruega, Mansur Yalçın et. Al. v. Turquia e Hasan e Eylem Zengin v.
Turquia.
12
Em elaboração
ADI 4439 / DF
anteriores relacionados ao ensino religioso, os quais reforçam a tese aqui
exposta, ressaltando que:
“Nesse sentido, é verdade que, ao prever a presença de
crucifixos em salas de aula de escolas públicas - um sinal que,
para além de eventual valor simbólico secular,
indubitavelmente se refere a Cristianismo – as leis conferem a
religião maioritária do país visibilidade preponderante no
ambiente escolar.
No entanto, isso não é suficiente para denotar um
processo de doutrinação por parte do Estado, nem implica
violação dos requisitos do Artigo 2 do Protocolo n.º 1.
O Tribunal reporta-se neste ponto, mutatis mutandis, aos
anteriormente citados julgamentos de Folgerø e Zengin. No caso
Folgerø, em que o Tribunal foi chamado para examinar o
conteúdo da disciplina ‘Cristianismo, religião e filosofia’ (KRL),
decidiu-se que o fato de o programa ter dado uma participação
maior para conhecimento da religião cristã do que a de outras
religiões e filosofias não implicava, por si só, desvio dos
princípios de pluralismo e objetividade, nem doutrinação. A
Corte explicou que, em vista do lugar ocupado pelo
Cristianismo na história e tradição da Estado envolvido – a
Noruega - esta questão teve que ser considerada como estando
dentro da margem de apreciação que lhe é dada no
planejamento e configuração do currículo (ver Folgerø, citado
acima, § 89).
O Tribunal chegou a uma conclusão semelhante no
contexto das aulas de ‘cultura religiosa e ética’ nas escolas
turcas, onde o programa deu maior destaque ao conhecimento
do islamismo haja vista que, apesar da natureza secular do
Estado, o islamismo era a religião majoritária praticada na
Turquia (ver Zengin, já referido, § 63).”16
16 Tradução livre de: “In that connection, it is true that by prescribing the presence of crucifixes
in State-school classrooms – a sign which, whether or not it is accorded in addition a secular
symbolic value, undoubtedly refers to Christianity – the regulations confer on the country's majority
religion preponderant visibility in the school environment. That is not in itself sufficient, however, to
denote a process of indoctrination on the respondent State's part and establish a breach of the
13
Em elaboração
ADI 4439 / DF
Também para o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, o
ensino de determinada religião ou crença é compatível com o direito
internacional dos direitos humanos, desde que existam alternativas que
acomodem os desejos e inclinações dos pais ou guardiões dos alunos e a
possibilidade de dispensa de forma não discriminatória.17 Por outro lado,
o mesmo Comitê já assentou que o ensino sobre as religiões, desde que
ministrado de forma objetiva e neutra, pode perfeitamente constar da
grade curricular.18
A Constituição brasileira, claramente alinhada com as balizas de
proteção internacional dos direitos humanos, previu de modo expresso a
facultatividade como contraponto ao ensino religioso de caráter
confessional ou interconfessional nas escolas públicas. É claro que, se o
ensino religioso referido no art. 210, § 1º, da Carta Política ostentasse
sempre o caráter secular, humanista, filosófico e histórico tal como
aventado na inicial, razão não existiria para garantir-se, em nível
constitucional, a sua facultatividade, cujo papel fundamental é evitar a
submissão dos alunos a conflitos de lealdade entre as convicções
requirements of Article 2 of Protocol No. 1. The Court refers on this point, mutatis mutandis, to the
previously cited Folgerø and Zengin judgments. In the Folgerø case, in which it was called upon to
examine the content of ‘Christianity, religion and philosophy’ (KRL) lessons, it found that the fact that
the syllabus gave a larger share to knowledge of the Christian religion than to that of other religions
and philosophies could not in itself be viewed as a departure from the principles of pluralism and
objectivity amounting to indoctrination. It explained that in view of the place occupied by Christianity
in the history and tradition of the respondent State – Norway – this question had to be regarded as
falling within the margin of appreciation left to it in planning and setting the curriculum (see Folgerø,
cited above, § 89). It reached a similar conclusion in the context of “religious culture and ethics”
classes in Turkish schools, where the syllabus gave greater prominence to knowledge of Islam on the
ground that, notwithstanding the State's secular nature, Islam was the majority religion practised in
Turkey (see Zengin, cited above, § 63). (CEDH, Lautsi et. Al. v. Itália, p. 31)
17 UN Human Rights Committee (HRC), CCPR General Comment. 22: Artigo 18 (Freedom of
Thought, Conscience or Religion), 30 July 1993, CCPR/C/21/Rev.1/Add.4, disponível em:
http://www.refworld.org/docid/453883fb22.html [accesso: 18 Agosto 2017].
18 UN Human Rights Committee (HRC), CCPR General Comment 22: Artigo 18 (Freedom of
Thought, Conscience or Religion), 30 July 1993, CCPR/C/21/Rev.1/Add.4, disponível em:
http://www.refworld.org/docid/453883fb22.html [accesso: 18 de Agosto de 2017].
14
Em elaboração
ADI 4439 / DF
religiosas ou laicas de seus pais - principais responsáveis pela educação
dos filhos - e as religiões lecionadas na escola, além de salvaguardar o
caráter pluralista e democrático da educação estatal.
Autorizar o ensino confessional e interconfessional nas escolas
públicas, nos termos acima descritos, em nada ofende o dever de
neutralidade do Estado, ainda que algumas confissões possam ser
predominantes, porque um dos propósitos da educação é justamente
fornecer aos alunos o conhecimento necessário à compreensão dos
valores e do papel que a religião exerce no mundo. Por isso mesmo, abrir
espaço para o ensino das confissões majoritárias em uma determinada
sociedade não se mostra, segundo penso, incompatível com tal
desiderato.
É natural que o tema em julgamento, por envolver valores caros a
uma vasta gama de interessados - pais, alunos, professores, escolas,
autoridades educacionais e a própria sociedade como um todo19
-
desperte a preocupação das distintas comunidades, levando
eventualmente a respostas discrepantes aos problemas que dele
emergem. Insisto, porém, que a própria Constituição antecipou-se aos
eventuais conflitos, prevendo parâmetros para o ensino religioso, os
quais, uma vez adequadamente adotados, afastam os riscos cogitados na
exordial, potencialmente decorrentes do ensino confessional ou
interconfessional, quando ministrado sem as necessárias salvaguardas.
Tais parâmetros encontram-se, como já acentuei, basicamente no art. 210,
§ 1º, da Constituição. Fora desta verdadeira régua de calibração de
direitos dos envolvidos, ficariam abertas as portas para posições
extremistas de um ou de outro lado da discussão.
Na mesma linha do que antes decidido pelo Tribunal de
Estrasburgo, não cabe a esta Suprema Corte estabelecer um regramento
19 EVANS, “Religious education in public schools: an international human rights perspective”,
p. 455.
15
Em elaboração
ADI 4439 / DF
minudente e dilargado para ensino religioso nas escolas públicas.20 Por
mais analítica que seja a nossa Constituição, neste tópico o texto magno
foi adequadamente parcimonioso, pois o ensino religioso suscita graves e
importantes discordâncias morais, todas igualmente justas e dignas de
respeito, não existindo soluções fáceis para as questões levantadas pelo
tema. No entanto, parece-me fora de dúvida que tal ensino foi autorizado
pelos constituintes de 1988, que traçaram as balizas dentro das quais ele
pode ser ministrado, de modo a harmonizar o princípio da laicidade do
Estado com o postulado da liberdade de crença, por cuja prevalência
tanto sangue a humanidade já derramou e ainda vem derramando.
Isso posto, e com a devido respeito pelas posições em contrário,
concluo que o ensino confessional ou interconfessional nas escolas
públicas, observadas as condições supra explicitadas, não apenas
encontra guarida na Constituição, como também colabora para a
construção de uma cultura de paz e tolerância e, mais, para um ambiente
de respeito ao pluralismo democrático e à liberdade religiosa, razões
pelas quais julgo improcedente o pedido inicial.
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