Por Giancarlo Vay.ESPECIAL FONTE JUSTIFICANDO
Quando, ainda no primeiro ano da faculdade de Direito, aprendi sobre a hierarquia das normas jurídicas (a Constituição é a norma que confere validade para todo o ordenamento jurídico, sendo que as leis, por sua vez, conferem validade para outras normas como portarias, resoluções, decretos…), não imaginava que poderia existir algo acima daquilo que Hans Kelsen chamou de “norma hipotética fundamental”. Ledo engano… após concluir a faculdade me deparo com “Códigos de Conduta” que estariam acima da referida norma hipotética, elaborados por um órgão estranho ao Estado brasileiro e ao qual, ao que me consta, não há qualquer tratado internacional que vincule o Brasil e cumprir suas disposições: a FIFA.
Em agosto de 2013 a FIFA elaborou e publicou em seu site um “Código de Conduta no Estádio para a Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014™” (link), com o intuito de descrever “as medidas e políticas de segurança aplicáveis para a conduta de (a) todas as pessoas que estejam usando um ingresso (‘Ingresso’) para comparecer a uma Partida (‘Visitante do Estádio’) e (b) todas as pessoas que estejam usando uma permissão de entrada para fins de trabalho (‘Credencial’), concedida para tal pessoa, (‘Pessoa Credenciada’) dentro de um estádio no qual uma Partida seja realizada e que esteja sob o controle das Autoridades da Copa do Mundo da FIFA (conforme definidas abaixo) nos dias de Partida (‘Estádio’)” (art. 1.1), sendo que “cada Visitante do Estádio e Pessoa Credenciada concorda e reconhece que leu, entendeu, aceitou e observará este Código de Conduta no Estádio, bem como quaisquer instruções específicas dadas por quaisquer das Autoridades da Copa do Mundo da FIFA. Caso seja considerado necessário, além do Código de Conduta no Estádio, outras instruções obrigatórias podem ser dadas pelas Autoridades da Copa do Mundo da FIFA para assegurar a segurança no Estádio, visando prevenir ou eliminar qualquer risco à vida, saúde ou bens pessoais” (art. 2.2).
Dentre as prescrições contidas em tal “Código de Conduta”, destaco a submissão a “inspeções, revistas pessoais e itens que sejam proibidos de usar, possuir, portar ou levar para dentro do Estádio em dias de Partida” (art. 3.1, c), dentre os quais: materiais relativos “tema de caridade ou ideológico, incluindo mas não se limitando a cartazes, bandeiras, sinais, símbolos e folhetos, objetos ou roupas, que possam interferir com o aproveitamento do Evento por outros espectadores, tirar o foco desportivo do Evento” (art. 4.1, h). Aliás, consta desse documento que seria uma falta ao “bom senso nos estádios” a prática de alguma conduta que possa “tirar o foco desportivo do Evento” (art. 5.6, e), “promover mensagens políticas ou ideológicas ou qualquer causa de caridade” (art. 5.6, g), “utilizar bandeiras para qualquer fim que não a manifestação festiva e amigável” (art. 5.6, l), “distribuir material impresso” (art. 5.6, m), “restringir ou bloquear passagens, caminhos e ruas, entradas e saídas para áreas de visitantes e saídas de emergência, ou obstruir ou interferir em zonas abertas ao trânsito” (art. 5.6, r), “escrever, pintar ou afixar qualquer coisa em elementos estruturais, instalações ou passagens” (art. 5.6, t) e “praticar outras atividades que possam [...] prejudicar a reputação do Evento, conforme avaliado a exclusivo critério das Autoridades da Copa do Mundo da FIFA e/ou de quaisquer outras pessoas legalmente autorizadas”.
Não obstante, em razão do “Tour da Taça da Copa do Mundo da FIFA 2014™”, um novo Código de Conduta foi elaborado pela FIFA, juntamente com sua parceira Coca-Cola (link), o qual traz, dentre outras disposições, que “Não é permitida a entrada de visitantes sem camisa, trajando roupas de banho ou outras indumentárias que possuam mensagens ou imagens que atentem contra o evento e seus participantes, a Coca-Cola, a FIFA ou que propaguem mensagens [...] imorais, religiosas, políticas ou quaisquer outras que violem o espírito desportivo e recreativo deste evento” (art. 17) e “Pela segurança e conforto de todos, não estão permitidas manifestações ou condutas individuais ou coletivas que sejam [...] religiosas, políticas ou quaisquer outras que atentem contra o evento e seus participantes, a Coca-Cola, a FIFA e ou que violem o espírito desportivo e recreativo deste evento”. Tal Código de Conduta vem sendo afixado nos locais que receberão a Taça da Copa do Mundo (da FIFA™, e não do povo), dentre eles no Shopping Metrô Itaquera, na Capital do Estado de São Paulo, durante os dias 29 de maio a 1º de junho.
Já tive a oportunidade de debater em outro espaço que a falta de poder de voz e de ingerência na elaboração de políticas públicas é fator que influi no aumento da sensação de vulnerabilidade e na incapacidade da população pobre para proteger-se dos possíveis abusos a seus direitos (conforme Informe Anual de 2002 da Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH). Não é por outra razão que as pessoas passaram a reivindicar algo mais que participar passivamente da gestão da sociedade ao lançar seus votos nas eleições, buscando participar ativamente nos processos decisórios e nos demais acontecimentos que determinam suas vidas (conforme Informe de Desenvolvimento Humano de 2000 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), tal como sói de acontecer na passagem do modelo de democracia representativa para o de democracia participativa. Ocorre que, excetuadas louváveis exceções, esse modelo de democracia ainda não faz parte da realidade brasileira e, diante de diversas violações de direitos fundamentais da população, as manifestações públicas passaram a ser um instrumento-chave para levar o grito dos excluídos aos ouvidos dos gestores da coisa pública.
O direito de manifestação do pensamento e de reunião estão previstos na Constituição Federal como direitos fundamentais, bem como estão previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13 e 15, respectivamente): “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (art. 220, CF), sendo “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, IV, CF) e “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, §2º, CF). “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (art. 5º, XVI, CF). Dessa forma, excetuada a hipótese de frustração de reunião anteriormente convocada para o mesmo local, não haveria qualquer tipo de restrição, conforme nossa Constituição Federal, para a realização de manifestações nos locais públicos, tais quais os “perímetros FIFA” (arredores dos “Locais Oficiais de Competição”, conforme a Lei Geral da Copa – Lei 12.663/12) que ainda fazem parte da coisa pública dos cidadãos brasileiros.
Especificamente à livre manifestação, os tais “Códigos de Conduta da FIFA” rasgam a Constituição Federal, relegam-na a mero peso de papel, ao proibir que os torcedores permaneçam nos locais dos jogos com camisetas ou cartazes que passem “mensagens políticas ou ideológicas ou qualquer causa de caridade” (art. 5.6, g). Trata-se de maquiar e sufocar a qualquer preço toda a indignação contra esse Mega-evento realizado a toque de caixa, às custas de muitas desapropriações irregulares (link), remoções compulsórias da população em situação de rua dos entornos dos estádios (link), proibição de exercício de atividade laborativa pelos ambulantes (link), além das vidas desperdiçadas nas desesperadas construções dos estádios (link), isso sem contar os mortos, feridos e ilegalmente detidos em virtude dos protestos realizados.
Os estádios, em que pese a organização do evento estar nas mãos da FIFA, ainda estão em território brasileiro, ainda se submetem ao ordenamento jurídico pátrio e, assim, o que ali ocorre deve estar de acordo com o previsto pela Constituição Federal e legislações pertinentes. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já teve a oportunidade de se pronunciar no sentido da aplicabilidade das normas constitucionais às relações privadas (por exemplo: RE 201819/RJ, RE 158215-4/RS e RE 161.243-6/DF). É o que se convencionou chamar de horizontalização dos direitos fundamentais sendo que, como aponta Daniel Sarmento, “as liberdades dos particulares não se revestem de valor absoluto. É possível que a proteção de uma delas, no caso concreto, importe em lesão a outro direito fundamental igualmente relevante, fazendo necessário restringir a liberdade em questão, de forma proporcional, visando à otimização dos bens jurídicos em confronto, mediante uma ponderação de princípios. É isso que ocorre quando da aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, tornando necessário ponderar a autonomia com o direito que seria violado pela conduta do particular”.
Um Código de Conduta – que, aliás, é termo que me remete imediatamente ao filme Piratas do Caribe – elaborado para proteção do evento (digo: para a proteção do capital) em hipótese alguma pode se sobrepor aos direitos fundamentais e suas respectivas garantias seja em razão da magnitude desses, seja pelo status Constitucional de que gozam. Cabe, agora, que os agentes públicos, sobretudo os magistrados que eventualmente se deparem com tais restrições da FIFA, trata-las exatamente como o Capitão Barbossa o fez quando a jovem Elizabeth invocou o direito de Parola a bordo do Pérola Negra: ignorando-o, posto que se trata de um mero Código de Conduta, o qual não vincula de modo algum as autoridades brasileiras que têm como compromisso antes o bem estar de sua população e o respeito ao ordenamento jurídico pátrio.
Imagem: Ben Tavener