RENATO SANTOS ACADÊMICO DE DIREITO N.º 1526 30/11/2023 Todo acadêmico de direito deveria ser ouvido e respeitado.
Os termos “direito” e “política” referem-se a conjuntos distintos de fenômenos, embora relacionados entre si. Desde o século XIX, em especial sob a influência de F. C. von Savigny e seus sucessores, tornou-se pronunciada a tendência, entre juristas, de se separar radicalmente o direito da política. Contudo, seria impossível tornar inexistentes as relações entre os fenômenos que cada um dos termos designa.
As relações entre direito e política ocorrem no plano empírico de maneiras variadas, mas um ideal de subordinação da política ao direito tem sido cultivado desde tempos remotos.
A palavra “política” deriva do vocábulo grego πολις, cuja tradução latina é civitas. Como se sabe, na Grécia antiga, πολις era o nome dado a um modo de organização peculiar de uma comunidade. A peculiaridade dessa forma de organização entre os gregos decorria de esforços para mudar a maneira de se entender e ordenar a vida em sociedade. Tais esforços tornaram-se visíveis após as Guerras Persas (490-78 a.C.), aproximadamente coincidindo no tempo com o aparecimento da sofística e da filosofia. Essa transição estabeleceu a tendência de se relativizar o peso do costume tradicional (incluindo todas as suas crenças ancestrais e preconceitos) enquanto vetor determinante de identidades e de condutas moralmente valorizadas como boas.1 Nesse processo, ao lado das ações e declamações passionais, cuja vitalidade e eficácia derivavam do sentimento religioso, e paralelamente à celebração poética das crenças próprias à mitologia politeísta, emergiu um interesse na valorização da deliberação política. Isto ocorreu num momento em que se valorizava também o ideal de “razão”, ou λογος. Diferentemente das ações e declamações tradicionais, a deliberação política abria espaço para que regras como as da retórica e da dialética ou tópica indicassem os caminhos da superação dos desafios práticos da vida em sociedade.2
No processo de formação da civitas, a sociedade romana em linhas gerais passou por transformação comparável. De um mundo dominado por reis-sacerdotes e pelo primado da experiência religiosa e práticas mágicas, a sociedade romana ingressa, a partir do século VI a.C., num mundo em que, na descrição de Schiavone, “a dimensão pública deixou de ser redutível exclusivamente ao espaço religioso, mas referia-se cada vez mais às funções do exército e das assembleias”.3 Tratava-se, nesse sentido, do “advento laico da política” em Roma.4
Portanto, em seu contexto original, “política” designava essencialmente o que ocorria ou deveria ocorrer na πολις (ou civitas) e em função dela. O que era “político” abrangia os critérios, referenciais normativos, modos e finalidades do exercício da autoridade dos que ocupavam cargos públicos, ou seja, posições de autoridade estabelecidas e reconhecidas como traços próprios à estrutura da organização política ou constituição. Com o passar do tempo, a organização política que se iniciou na Grécia antiga sofreu transformações e, na era moderna, passou a ser chamada mais frequentemente de Estado.5 Isto significa que, mesmo na sua acepção moderna, o termo “política”, designa primordialmente a atividade e discursos típicos de quem exerce autoridade “oficial” no âmbito da πολις ou Estado. Nesse sentido, genericamente, a política corresponde à totalidade das ações (incluindo falas) praticadas oficialmente por autoridades de um Estado, ou qualquer parte dessa totalidade.
Mas há, ainda, um ulterior significado da palavra “política”, que é uma extensão dos sentidos já explicitados. Nesta ulterior acepção, a palavra “política” designa ações e discursos não oficiais, mas tendentes a mudar a configuração atual das posições de autoridade no âmbito do Estado, os critérios normativos sobre os quais se apoia e suas consequências sociais, econômicas e culturais. Vale dizer: a palavra ou ação, que desafia os cânones substantivos ou procedimentais da política atual e tende a modificá-los, é também política. Neste último caso, portanto, “política” é qualquer ação ou fala que, mesmo ocorrendo no seio da sociedade (ou no âmbito das relações entre sociedades distintas, como é o caso das guerras contra inimigos estranhos à comunidade tomada como referência), tenha a intenção ou o potencial de impactar e mudar estruturas institucionais de um Estado e suas consequências sobre a vida social.
A palavra “direito”, a seu turno, tem também importantes e diferentes matizes de significado. Primeiramente, deve-se observar que a palavra “direito” é muitas vezes usada para expressar a ideia correspondente ao termo latino jurisprudentia. Entre os romanos, esse termo veio a designar um conjunto de práticas intelectuais e institucionais, desenvolvidas a partir da segunda metade da era republicana, mediante as quais uma autoridade do Estado – o pretor – frequentemente agia no sentido de modificar o costume tradicional em situações nas quais antigas regras costumeiras geravam conflitos entre cidadãos.7 Tais práticas e várias das ideias normativas que iam sendo geradas e institucionalizadas por meio delas (por exemplo, usucapio, accessio, mutuum, mandatum, res mancipi etc.) foram, ao longo do tempo, modificando paulatinamente o costume ancestral romano e sendo articuladas em uma tradição que se tornou milenar.
Do ponto de vista de sua articulação intelectual, havia uma sutil, porém importante, relação entre a jurisprudentia dos romanos e as elucubrações de sofistas e filósofos gregos. Sobre isto vale a pena esclarecer que o desenvolvimento dos conteúdos da jurisprudentia romana resultou não somente da atuação dos pretores, mas também da absorção de opiniões estilizadas, produzidas por intelectuais diletantes da aristocracia, que ficaram conhecidos como jurisconsultos. A consequência disto era que, na formulação de suas contribuições, os jurisconsultos e pretores frequentemente empregavam “raciocínios” formados por influência da dialética da Escola Estoica de filosofia.8 Ou seja, o discurso jurídico (que era o discurso da jurisprudentia) beneficiou-se de formalismos estoicos para articular o modo como as ideias normativas eram produzidas, viabilizando um certo afastamento delas em relação a crenças imemoriais e injunções tradicionais.
Assim, enquanto resultado de um trabalho cumulativo, a jurisprudentia romana criou referenciais normativos produzidos pela atividade do pretor em colaboração intelectual com os jurisconsultos. Esse trabalho inovava aos poucos as práticas sociais e impulsionava mudanças em prol do projeto político representado pela comunidade política de Roma. Como se sabe, esta comunidade cresceu, inicialmente ampliando-se para dominar a península itálica e o norte da África e, de uma república, acabou se transformando em um vasto império, não sendo razoável negar o papel do direito em tal expansão.
Com efeito, o direito romano foi, de certo modo, um sustentáculo do modo de organização e expansão da sociedade romana, durante um tempo longo. Ao lado do direito de seus próprios cidadãos (jus civile, modificado aos poucos pelo pretor), Roma desenvolveu também um direito – o jus gentium, por muitos considerado um antecessor do direito internacional – que servia para ajudar na superação de conflitos entre romanos e estrangeiros (ou entre estrangeiros apenas). Sabe-se que a permanência das legiões romanas espalhadas nas províncias era facilitada pela flexibilidade do costume, refletida na abertura dos soldados para o sincretismo religioso. Tudo isso contribuiu para que o Império Romano, se considerada a permanência de Constantinopla após a queda do Império do Ocidente em 476 d.C., tenha tido uma duração de cerca de 1.500 anos, com o auxílio do direito.
Na Idade Média europeia, o direito romano foi seletivamente apropriado para, ao lado de elementos oriundos do costume bárbaro de tribos germânicas, ser empregado em cidades, principados e reinos, sendo ao mesmo tempo crescentemente adaptado para atender a finalidades variadas, próprias a diferentes projetos políticos e econômicos. É difícil negar que o direito tenha atraído o apoio de líderes políticos por constituir um meio para assegurar a realização de certos interesses estratégicos. A técnica de empregar o discurso modulado pela dialética, às vezes de modo misturado com a retórica, mas dando a base para o exercício de um controle prático sobre processos sociais, foi marcante no continente europeu. Na Inglaterra, o direito que se projetou para além dos costumes bárbaros existentes secularmente na ilha correspondeu ao common law, resultante do trabalho cumulativo dos tribunais criados a partir da corte do rei (curia regis) após a invasão normanda, ocorrida no século XI.9 Assim, “direito” veio a designar não somente as práticas da jurisprudentia criada pelos romanos, mas também seus referenciais intelectuais abstratos e suas posteriores modificações, bem como adaptações de tais referenciais em sistemas institucionais distintos, entre os quais se destacam, além do common law, o direito dos comerciantes (ou “direito comercial”) e o da Igreja Romana (o “direito canônico”).10
Em resumo, embora passando por muitas transformações e adaptações, a tradição do direito, originada na república romana, estendeu-se ao longo dos séculos, alcançando o modo como inúmeras comunidades políticas (ou religiosas, no caso de diversas igrejas) se organizam e processam parte de seus conflitos no mundo contemporâneo. Contudo, deve-se admitir que alguns “direitos” – este foi o caso do common law – desenvolveram instituições com base em raciocínios e derivações discursivas relativamente independentes de legados substantivos do direito romano.
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