O Banco Itaú vem atuando, desde 2013, como verdadeiro idealizador e gestor de um projeto que redesenha o centro de São Paulo, não apenas como seu financiador, mas definindo novos usos − e usuários − para o espaço público
Por Sabrina Duran, com Fabrício Muriana e Marcela Biagigo, no Arquitetura da Gentrificação
A rigor, a privatização − ou a desestatização − significa a venda de um bem público ao setor privado. Essa definição em sentido estrito não se aplica, evidentemente, ao caso apurado e apresentado pelo nessa reportagem.
O Vale do Anhangabaú, assim como os largos do Paissandú e São Francisco, não foram vendidos ao banco Itaú pelo município.
O processo de “venda” aqui apresentado é muito mais sutil, homeopático e entranhado do que uma transação de compra e venda.
Nas palavras do economista, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Vainer, publicadas no ensaio “Pátria, empresa e mercadoria”, trata-se de uma redefinição dos conceitos de poder público e de cidade “numa operação que tem como um dos esteios a transformação da cidade em sujeito/ator econômico (…) cuja natureza mercantil e empresarial instaura o poder de uma nova lógica, com a qual se pretende legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por grupos empresariais privados”.
Quem visitou o Vale do Anhangabaú durante os jogos da Copa do Mundo de 2014 pôde testemunhar um exemplo concreto de privatização sem venda.
Escolhido como palco das festas oficiais da Fifa durante os jogos, o Vale do Anhangabaú foi totalmente cercado por tapumes e gradis que restringiam o livre trânsito dos cidadãos naquela área. Até mesmo a vista gratuita sobre o Vale desde o Viaduto do Chá foi impedida pela colocação dos tapumes.
Para entrar no espaço, as pessoas eram obrigadas a passar por revista feita por seguranças terceirizados. Se portassem algum alimento ou bebida, deviam descartá-los antes de cruzar as catracas que davam acesso ao Vale, sendo, portanto, obrigadas a consumir, a preços inflados − água a R$ 4 e lata de cerveja a R$ 8 − o que era vendido pelas empresas patrocinadoras do evento.
A vigilância era ostensiva: bases policiais com câmeras, seguranças particulares e um destacamento de dezenas de policiais militares ao longo de toda a área do Vale do Anhangabaú.
A transformação da cidade em ator econômico, em “cidade-empresa”, segundo Vainer, que compete com outras cidades para vender boa localização e atrair investimentos do capital transnacional, é melhor entendida à luz da agenda neoliberal imposta aos países da América Latina nos anos 1980, em decorrência da crise da dívida externa.
É a partir dessa época, e especialmente nos anos 1990, que se intensifica sobre as nações endividadas a interferência ativa de instituições financeiras multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial, tendo como horizonte o ajuste fiscal dos países em crise.
O geógrafo inglês David Harvey, no livro “Espaços de neoliberalização: em direção a uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual”, aponta uma diferença chave entre o Estado liberal e o neoliberal no gerenciamento da dívida pública.
Enquanto no Estado liberal os prejuízos advindos do mau investimento dos empréstimos feitos pelo poder público são totalmente arcados por este, no Estado neoliberal, os gestores públicos conseguem, junto às instituições financeiras multilaterais, a rolagem da dívida.
Para tanto, tais instituições obrigam o Estado a realizar reajustes estruturais como, por exemplo, a flexibilização de leis trabalhistas, privatizações e cortes de serviços básicos, “não importando as consequências para a sustentabilidade e bem-estar social da população local.” Por isso, segundo Harvey, a missão fundamental do Estado neoliberal “é criar um ‘clima de bons negócios’ e, assim, otimizar as condições para a acumulação de capital (…).”
Para além da flexibilização de leis trabalhistas, privatizações e outras medidas que condicionam a rolagem da dívida dos Estados e ainda a tomada de novos empréstimos, pouco a pouco, os Estados também foram forçados a transpor a lógica das empresas para sua gestão. “Isso significa que, além de colaborar com o equilíbrio financeiro do ajuste fiscal, as cidades deveriam tornar-se ‘máquinas de produzir riquezas’”, nas palavras do urbanista e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Pedro Arantes, em artigo intitulado “O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades”.
Se no contexto neoliberal as cidades − especialmente as grandes, como São Paulo − tornam-se cada vez mais cidades-empresa, como assegurar que elas alcancem “a eficácia, isto é, a produtividade e a competitividade que se espera de uma empresa?”, pergunta-se o sociólogo Carlos Vainer. “A melhor solução”, diz ele, “(…) é recorrer a quem entende do métier − se de empresa se trata, convoquem-se os empresários; se o assunto é business, melhor deixá-lo nas mãos de businessmen.”
E aqui começa a atar-se o nó desse caso específico do projeto de transformação urbana do Vale do Anhangabaú e áreas adjacentes, pouco a pouco distinguível em um emaranhado das transações: ao doar à prefeitura um projeto arquitetônico de requalificação do centro histórico da cidade mais rica da América do Sul, com metodologia pré-definida que ele mesmo escolhe sem qualquer consulta prévia à população e pela qual paga; ao financiar, ainda, os workshops da empresa contratada que legitimarão sua metodologia perante a opinião pública; e por fim, ao subcontratar empresas que implementarão o projeto no espaço público sob suas premissas de cliente e a ele legalmente vinculadas, o banco Itaú assume os instrumentos do poder público e define, de saída, não apenas o tipo de desenho e função da cidade que quer ver reconfigurada, mas também o tipo de pessoa que desfrutará dessa nova cidade refeita − tratando-se de cidade-empresa, será a pessoa-cliente a beneficiária do novo espaço público redesenhado.
A contraface desse processo é que, ao aceitar que o Itaú ocupe o lugar de planejador, contratador, gerenciador e financiador principal de um projeto de transformação do espaço público, a administração municipal entrega ao banco seus instrumentos de poder público ao preço de uma “doação sem ônus”. O que parece um contrasenso, na verdade, faz todo sentido no contexto neoliberal de gestão da cidade-empresa.
“Os Estados não foram diminuídos como fez crer o ideário neoliberal, mas adaptaram-se às exigências das grandes corporações e do capital financeiro”, escreve a urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato, no artigo “Globalização e Política Urbana na Periferia do Capitalismo”.
Essa adaptação aparece entre as estranhezas processuais apontadas pelos advogados e urbanistas com os quais a reportagem do AG reuniu-se em 30 de outubro de 2014 para discutir os resultados da apuração. A principal delas é a agilidade com que os trâmites burocráticos de aceitação da doação do Itaú pela prefeitura foram feitos dentro das secretarias municipais.
“Durante esse tipo de processo há uma ida e vinda burocrática que é normal, mas a rapidez com que isso foi feito não é comum na administração pública”, afirmou Rodrigo Iacovini, advogado, mestre em planejamento urbano pela FAU-USP e membro da equipe ObservaSP (observatório ligado ao Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP).
De fato, a tal ida e vinda de pareceres iniciais e retornos entre uma instância pública e outra acontece com intervalos de um e dois dias. “No mesmo dia, o [Gustavo] Partezani [da SPUrbanismo] devolve o parecer, sem consultar ninguém, e diz que o projeto é de interesse público”, apontou José Marinho Nery Jr., urbanista, doutor pela FAU-USP e arquiteto efetivo da prefeitura de São Paulo. Marinho refere-se ao parecer do superintendente de Desenho da Paisagem da SPUrbanismo, Luís Eduardo Brettas, sobre o projeto doado, que considerou de interesse público após escrever um breve relato sobre os workshops realizados pelos arquitetos dinamarqueses em abril de 2013.
Brettas envia seu parecer ao diretor de Desenvolvimento da SPUrbanismo, Gustavo Partezani, em 9 de agosto de 2013. No mesmo dia, Partezani reencaminha o parecer a Fábio Teizo da Silva, chefe de Gabinete da SPUrbanismo, para que este tome providências.
Teizo da Silva, também em 9 de agosto, reencaminha o parecer a Ricardo Simonetti, superintendente jurídico, para “análise jurídica e elaboração do Termo de Doação e ações correlatas”. Ainda em 9 de agosto, Simonetti dá seu parecer favorável à aceitação da doação. Luiz Antonio Tiengo, outro superintendente jurídico, reencaminha o parecer de Simonetti a Teizo da Silva também no mesmo dia. Foram 4 idas e vindas em um único dia.
Marinho, que trabalha há 25 anos na prefeitura de São Paulo, diz que a SPUrbanismo não tem competência para dizer o que é ou não é de interesse público, e é categórico ao afirmar que Partezani deveria, pelo menos, ter consultado a Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos (SMNJ). “A Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos, através da Procuradoria Geral do Município (PGM), dá parecer sobre a legalidade de tudo o que a prefeitura faz. Todos os procuradores municipais são ligados a ela e estão presentes em todas as secretarias e subprefeituras. No caso daquele processo de doação, acho que o procurador ou a própria PGM deveria ter sido consultada sobre o interesse público da doação do Itaú. Achei estranho que nenhum órgão jurídico tenha sido ouvido no processo quanto a isso. O processo só foi para a assessoria jurídica da SMDU para formalizar/formatar o contrato. Não tenho ideia do porquê não foi ouvido um procurador municipal quanto ao interesse público da doação. Se o processo tivesse caído na minha mão, certamente teria encaminhado para o Jurídico para seu parecer”, explicou o urbanista.
O advogado Rodrigo Iacovini corroborou a colocação de Marinho, e completou: “quando é um termo de doação sem ônus para o poder público, as secretarias podem assumir isso sem grandes problemas. Mas é uma parceria entre a prefeitura e o Itaú, com um termo de doação para um projeto no centro. Isso pode ter uma repercussão grande. Se eu fosse da SMDU teria passado pela Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos porque isso pode dar um enorme problema no futuro.”
A respeito da subcontratação, pelo Itaú, das empresas Metro Arquitetos e da Entre Produções − e da ONG Cidade Ativa pela Entre − para que implementassem os projetos-piloto no Largo do Paissandú e São Francisco, Rodrigo Iacovini considera esta uma das questões mais problemáticas de todo o processo apurado pela reportagem. “Trata-se da privatização do espaço público. É você começar a lidar com a manutenção e com a gestão do espaço público a partir do privado.”
Para o sociólogo Carlos Vainer, entregar o público aos “cuidados” do setor privado não é pouca nem inócua transação. Significa, de acordo com ele, a despolitização da cidade, a negação da política entendida como a ação coletiva no espaço público. “O processo de privatização da cidade (…) portanto, é o fim da expectativa da democracia urbana. É a transformação do governo urbano em um governo autoritário.”
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